domingo, dezembro 19, 2004

cartas - parte II

(...) A coisa que eu mais gostava era no tempo frio sair fumacinha da minha boca. Pipocas, Fernando! Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo no vento na chuva, molhou o vestido, perdeu o chapéu. Clarice Lispector sabe rir e chorar ao mesmo tempo, vocês já viram? Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre.
Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice.

(De uma carta de Fernando Sabino à Clarice Lispector.
New York, 10 de junho de 1946)



Longe de mim copiar Fernando Sabino. Se eu pudesse ter escrito cartas à Clarice Lispector acho que desaprendia português na hora em que pegasse papel e caneta.
Mas ele escreveu das cartas mais bonitas que já li.
E ele conta coisas que, se contasse eu numa carta que eu jamais chegarei a escrever, seriam mais ou menos assim:



Passei longos intermináveis dias sem sair de casa e as madrugadas quentes sem ventilador queimando em febre e chorando às cinco em ponto da manhã.
Mas passou passou, tudo passa, e restaram as olheiras fundas e o olhar para a janela porque lá fora chove e estou em casa de novo porque chove chove chove e é domingo e eu queria ir ao cinema, mas chove sem parar e eu não posso chover tanto assim.
E eu te conto que tenho estado calma agitada nervosa histérica depois serena como um dia de outono.
Tenho sentido tanta saudade de amigos que estão lá e acolá, mas não aqui. Não aqui.
Tenho tido uma vontade louca enorme quase incontrolável de viajar.
Tenho sentido vontade de estudar francês.
Tenho gostado de melão, barrinhas de cereal e suco de manga.
Tenho escrito pouco, lido muito, visto menos filmes do que eu gostaria.
Não tenho me reconhecido em fotos. Porque imagino meus contornos diferentes do que eles realmente são, e daí quando me vejo vem um espanto de passarinho.
Tenho me sentido cotidiana, simples, previsível, sem a menor necessidade de grandiloquência e filosofias.
Tenho gostado de verbos simples, cores primárias, de dormir de janela aberta e acordar com sol. Tenho sentido cada vez menos melancolia.
Ainda não me acostumei com a idéia de ser uma pessoa formada. É engraçado pensar em dizer: "estou formada". Porque quem me olha sabe que ainda estou absolutamente incompleta.
Tenho cultivado o hábito de descrever imagens e escrever em postais. Eu às vezes escrevo longas descrições de quadros bonitos mas não tenho coragem de mandá-los porque me dá tristeza e saudade.
Quando eu consigo, é minha maior prova de amor.


E eu tenho escutado muito muito o silêncio. Foi o Manoel de Barros que me ensinou.
E se eu soubesse, colocaria uma imagem aqui agora. De um postal da Clarice que o André me emprestou uma vez.
Mas eu não sei.
Então deixa pra lá.




Tenho feito descobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez.