quarta-feira, julho 26, 2006

sobre importâncias


São dias aqueles em que um branco absoluto se espraia pelo papel não dando espaço para mais nada no mundo além de espera e silêncio, dias assim em que os gatos se aninham redondos em si mesmos por tardes inteiras, pessoas desfilam pelas ruas olhares pacíficos de inominável melancolia e uma chuvinha fina esconde em árvores seus passarinhos. Em dias assim, ela se recusava a aceitar a brancura e a ausência de gritos e deslumbramentos e observava com o coração aos pulos àqueles instantes infinitesimais que antecedem ao amor, à beleza ou à negação absoluta de tudo que há e permanece. Palavras e imagens rodavam loucas pelo ar mas nenhuma delas se lhe ousava ficar, estarão os sonhos da madrugada insistentes e apaixonados lhe roubando todos os arrebatamentos de tarde? Era preciso, pois, escrever, ainda que isso se demonstrasse difícil como encontrar metáforas. Era preciso, pois, tentar sempre tentar tudo tentar ainda que tudo lhe parecesse inacessível estranho e irremediável. Será verdade isso tudo ao avesso, os ângulos invertidos e os olhares arredios? Será tão improvável reencontrar a vontade de poesia os transbordamentos de criação as epifanias muitas a felicidade crianceira – uma caneta uma folha sorrisos de aleluia? Já fazia semanas em que a vida era alegre e belezas várias permeavam seus dias e tudo parecia possível claro e estabelecido, mas aí amanhecia melancólico e tudo desesperava – os olhos o coração as lembranças os equívocos – e uma vontade incontrolável de Caio Fernando Abreu, mas até ele andava por aí perdido em casa alheia. A verdade inconfessada era que ainda lhe doíam as mentiras os enganos e os desamores, mas isso não se diz isso não se conta então faça-se o não. Pois que haverá o dia em que betty blue et zorg chegarão derramando o mundo inteiro em azul, pois que haverá o dia em que todos os dias revelar-se-ão novos em sua inteireza, pois que haverá o dia em que nenhuma melancolia tomará conta de todos os espaços vazios porque não haverá mais tantos espaços vazios. Haverá?


Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas sobre as pequenas eu sei menos.
(Manoel de Barros, Memórias Inventadas – A segunda infância)