quarta-feira, julho 23, 2008

epitáfio

E na verdade não terei nenhuma dificuldade, pois quando desejamos realmente o amor, acabamos sempre por encontrá-lo à nossa espera.
Oscar Wilde, De Profundis

terça-feira, novembro 06, 2007

finito

Há de se aprender a finalizar ciclos ainda que algumas tristezas sejam irreparáveis, e isso nem é tão dramático quanto soa ser. A verdade redentora é que nunca faz silêncio de todo em mim e o que me mantém viva é que jamais abandonei possibilidades - as mais tímidas que fossem - de sorrisos.
Há de não esquecer nunca que não se pode evitar as manhãs.
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(Pra lembrar, caso eu mesma às vezes esqueça, que esse blog acabou.)
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segunda-feira, outubro 08, 2007

de um único rosa lhe verte um rio




Mais dada aos deslimites dos encantos
que às certezas em linha reta
e às concretudes brancas daquelas ruas
pálidas
ela anda

- nas mãos fechadas dois punhados de adjetivos que espalhados trazem efeito de areia aos olhos -

[e quem espera todas as manhãs pelo porvir de uma flor que teima em não surgir aos olhos, aprende desde já que não há no mundo
cor
donde possa desenhar-se-lhe o cheiro ainda inexistente]
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Mais escorrida em um derramar constante
de amor em estado líquido
que contornada por pontilhados
simétricos
de um lápis curioso qualquer
ela segue
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- os pés como num susto de quem adivinha terra vermelha entre os dedos -
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[e não há de se querer adivinhar dela
o amor
pois que ele é como vento
que desde criança sopra e faz funcionar
o moinho do coração
O amor prescinde de qualquer mundo
que não o seu.
O vento que mora em seu coração ela nunca precisou inventar.]
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O que dela nasce
curvilíneo, líquido e escorregadio
é pequeno silencioso só eleva a voz
para os seus
e cabe no todo do papel rosa
por onde ela caminha tateia corre deita a cabeça
para ouvir os sussurros
a partir do chão
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- por ali, dizem, há espaço suficiente para quem se arrisque a habitar-lhe as mãos -
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(a flor e a foto são singelas mas contêm em si um princípio pálido de delírio.)
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Como quem pingasse açúcar em meio ao peito de uma formiga que carrega sonhos dezenas de vezes maiores do que ela.
ela vive.
assim.

sexta-feira, setembro 07, 2007

o gato e o escuro


[Presente do Paulo. Porque um dia escreverei histórias assim.]
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Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história.
Pois ele nem sempre foi dessa cor.
Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.
Todos lhe chamavam o Pintalgato.
Diz-se que ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto.
Vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro.
O caso, vos digo, não é nada claro.
Aconteceu assim:
o gatinho gostava de passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite.
Faz de conta o pôr do Sol fosse um muro.
Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se afligia e pedia:
- Nunca atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia que sim, acenava consentindo.
Mas fingia obediência.
Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá.
Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez, inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca a dormir.
Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho.
Até que a metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.
Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas dianteiras e se assustou.
Estavam pretas, mais que breu.
Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim.
Não queria ser visto em flagrante escuridão.
Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira.
E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade.
À medida que avançava seu coração tiquetaqueava.
Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego?
Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou.
Chorou.
E chorou.
Pensava que nunca mais regressaria ao seu original formato.
Foi então que ouviu uma voz dizendo:
- Não chore, gatinho.
- Quem é?
- Sou eu, o escuro. Eu é que devia chorar porque olho tudo e não vejo nada.
Sim, o escuro, coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz!
Não era de sentir pena? Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmo ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada, nem a cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza.
E o escuro, triste, desabou em lágrimas.
Estava-se naquele desfile de queixas quando se aproximou uma grande gata. Er a mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
- Pois eu dou licença a teus olhos:
fiquem verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do escuro de amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
- Sou feio. Não há quem goste de mim.
- Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
- Então porque não figuro nem no arco-íris?
- Você figura no meu arco-íris.
- Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
- Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
- Não entendo, Dona Gata.
- Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
- Não estou claro, Dona Gata.
- Não é você que me te medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.
A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro.
E foram carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou viu que as suas costas estavam das cores todas da luz.
Metade do seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O espanto ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:
- Você quer ser meu filho?
O escuro se encolheu, ataratonto.
Filho?
Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
- Como posso ser seu filho se eu nem sou gato?
- E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.
- Mas, mãe:
sou irmão disso aí?
- Duvida, Pintalgatito?
Pois vou-lhe provar que sou mãe dos dois.
Olhe bem para os meus olhos e verá.
Pintalgato fitou o fundo dos olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a noite.
Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam encheram de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta.
Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo.
Por detrás dessa fenda o que é que ele viu?
Adivinham?
Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.

(Mia Couto)

sábado, agosto 04, 2007

das importâncias


A coisa mais imensa do mundo é o sorriso. O resto existe apenas para preencher os espaços vazios na falta dele.
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domingo, julho 29, 2007

omaggio a armindo trevisan

Simplesmente porque estava ociosa naquela tarde e queria acariciar o mundo ela despertou de entre seus dois sóis, o real e o que irradiava de seus cabelos quando em festa, e com a caneta prendeu fogo às suas mãos geladas – as mãos dela eram as mãos mais geladas que jamais existiram no mundo - e escreveu uma carta longa longa, dessas em que ninguém consegue poupar as próprias vísceras da exposição ao sol, reinventando o amor pelo amigo que está longe olhando todos os dias o mar de Copacabana, e lhe mandou um postal do Chagall para enfeitar a geladeira dizendo "geladeiras gostam de cores e arco-íris", e sabia que ele entenderia exatamente o que era quê. E porque estava ociosa naquela tarde e queria acariciar o mundo saiu de bicicleta a andar em círculos ao redor das crianças que brincavam nos balanços, e porque ontem tinha ido a um show que a deixou arrebatada a sonhar em acordes de guitarra, feliz, ela decidiu então, sim, é isso, a partir de hoje tentar ser furiosamente feliz, sempre furiosamente feliz, e reafirmar os afetos todos os dias depois do café da manhã e, sim, a partir de amanhã começar finalmente a nadar entre os peixes imaginários. Tudo daria certo e seria bom e calmo e definitivo como os peixes azuis que nasciam de seu ventre, e tudo isso porque estava ociosa naquela tarde e tinha finalmente conseguido acariciar o mundo.
n
n
n

domingo, julho 22, 2007

(...)

e foi quando caiu insolúvel a tarde inteira e todas as cartas já estavam escritas e as folhas de plátano quedavam silenciosas aninhadas às suas árvores e quando nada mais necessitava da presença urgente do seu coração que ela pediu, numa espécie de sorriso, talvez fosse mesmo um sorriso, quem poderia dizer ao certo se sorria de fato ou? mas ela disse:
sim
sim
Reserva-me uma valsa.
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E quem se atreveria a dizer não?
ljlj