domingo, agosto 27, 2006

tempo sem tempo

vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
por algum tempo
o tempo dá voltas e curvas
o tempo tem revoltas absurdas
ele é e não é ao mesmo tempo
avenida das flores
e a ferida das dores
e só então
de sopetão
entro e me adentro no tempo e no vento
e
abarco e embarco no barco de Ísis e Osíris
sou como a
flecha do arco do arco-íris
que despedaça as flores mais
coloridas em mil fragmentos
que passa e de graça distribui
amores de cristais totais sexuais celestiais
das feridas
das queridas despedidas
de quem sentiu todos os
momentos

José Miguel Wisnik. Salve. E nem essa letra tão linda pode ilustrar a milésima parte do tamanho da beleza que é essa música. E assim, numa manhã gelada de domingo, caminho calmamente rumo ao Teatro São Pedro pra encher meus sonhos de novos violinos. Se um dia eu compuser letras, quererão ser como as dele.

segunda-feira, agosto 21, 2006


A gente sonha sonhos na vida que um dia acaba esquecendo. Inevitavelmente acaba esquecendo. Ao menos as pessoas assim como eu, que descobrem novos quereres todos os dias, um novo desejo a cada dia. E um dia então você se dá conta, assim sem mais, que aquela alegria louca, aquela nostalgia inexplicável de se imaginar morando em uma daquelas casinhas à beira do mar que invadia as ruelas foram adormecidas, e no lugar delas surgiu a vontade de viver numa cidadezinha estrelada em minas, e depois de aprender a falar francês no canadá, e depois de ter uma filha linda com nome de duas sílabas, e depois de ser uma apaixonada professora de literatura, e depois de tocar violoncelo num pôr-de-sol de vale, e depois de escrever livros para crianças, e assim sucessivamente. Mas aí um dia você vê uma foto, ou ouve uma música, ou lembra um sorriso, ou recebe um e-mail de um amigo que tanto ama e os sonhos antigos voltam, tudo volta numa violência transbordante de afetos pra te fazer derramar inteira em saudade. Saudades. Inevitáveis amores vividos em silêncio.

terça-feira, agosto 08, 2006


É uma ansiedade tão profunda que palavra no mundo poderia descrever.
Não há música que caiba, não há livro que seja, não há lembrança que persista, pois agora começa tudo, agora se inicia tudo, e eu só conseguirei voltar a escrever olhando a lua da sacada da minha casa nova.

sexta-feira, agosto 04, 2006

ela


Era de dimensões grandiosas na sua pequenice de menininha espalhada em longas tranças de indiazinha e grandes olhos escuros atentando sempre para o mundo e algo além do que se podia enxergar a olho nu. Era grande no seu amor pelo mundo – as possibilidades de mundo que avistava a partir de si mesma todos os dias quando arregalava os olhos muito muito para conseguir ver melhor o céu mudando tão rapidamente de cor que quando conseguia dar nome a uma ela tinha subitamente se transformado em outra e assim ela sentia o coração pulular, ela não sabia ainda mas isso que pululava dentro dela como gatinho feliz era felicidade crianceira, dessas que são poucas as pessoas que em adultas conseguem repetir. Era de pele moreninha e boa de dar beijinhos e a cada vez que se encantava com algo o mundo inteiro se enchia de amor e em algum lugar alguém de súbito entendia "sim, é tempo de lua clara e de morangos". Era de mãozinhas bonitas e dedos longos e gostava de acarinhar coisas para compreender melhor seus desenhos. Era de uma certa gagueira de pensar e se atrapalhava ao falar palavras bonitas, essas que ela procurava soltas pelas conversas alheias, mas a cada vez que começava a contar das suas coisas o mundo se enchia inteiro de inesperadas bonitezas. Era doce irritadiça e linda, e nascera em mim nos primeiros cheiros de uma manhã de outono em que acordei em estado de graça depois de tê-la conhecido em sonho. Desde então ela me chegava todos os finais de tarde, me olhava sorrindo seu sorriso de menininha e dizia sim mamãe, eu já existo, eu existo desde sempre, deitava sua cabeça em meu colo e se deixava ninar. A minha menininha dos olhos.